Brasília tem de continuar tombada?
A capital federal foi tombada como Patrimônio Cultural da Humanidade no dia 7 de dezembro de 1987, pela Unesco. Em 2009, o assunto virou polêmica quando Oscar Niemeyer projetou a Praça da Soberania, com um grande obelisco, entre a Rodoviária e a Praça dos Três Poderes. Defensores da cidade tombada afirmavam que o projeto era uma infâmia, porque impediria a visão plena da Esplanada dos Ministérios e do Congresso Nacional. Já Niemeyer dizia que mudar é uma característica inerente das cidades. A praça não foi construída. Afinal, cidades têm de ser tombadas? Quais as consequências do tombamento para o dia a dia de Brasília?
Elcio Gomes, arquiteto e urbanista, membro do Docomomo-BSB
Cidades que possuam aspectos urbanísticos peculiares, planejados e executados, dos quais dependam para a manutenção do legado histórico e cultural local, devem ser objetos de registro no livro do tombo histórico. Esse é o caso do conjunto urbanístico de Brasília. A principal consequência disso tem sido o desafio contínuo de conciliar crescimento e adequações e, nesse cenário, os conflitos são inevitáveis. Merecem destaque os debates promovidos por arquitetos e urbanistas, pelos órgãos fiscalizadores e de planejamento e, principalmente, pela população, que identifica na ação de tombamento um meio de preservar a história da cidade.
Alfredo Gastal, superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan-DF)
O tombamento da cidade protege a concepção urbanística de Lucio Costa e não engessa o Distrito Federal, concebido para abrigar a administração pública do Estado. Não se pretendeu, em nenhum momento, que ela se transformasse numa metrópole regional. O que houve desde 1960 foi um adensamento esparso, incongruente e irracional, com cidades satélites, principalmente entre 1964 e 1984. O problema é a ausência de racionalidade na ocupação do espaço. Além disso, esse tombamento é volumétrico - um prédio pode ser demolido e outro construído no mesmo lugar, desde que ocupe o mesmo volume do antigo. Só não podem ser alterados os prédios que foram tombados individualmente. As áreas verdes, por outro lado, não podem ser destinadas à construção civil. Cabe-nos questionar a quem, portanto, interessaria revogar o tombamento. O projeto da Praça da Soberania, por exemplo, não pôde ser aprovado porque ocuparia a área do canteiro central do Eixo Monumental na Esplanada dos Ministérios, que é não edificante; interferiria na Rodoviária e faria um contraponto dissonante com a Torre de Televisão. O obelisco proposto cobriria, por fim, a vista para o edifício do Congresso Nacional. Será que somos mesmo tão ricos em arte ou arquitetura para dispensar um Patrimônio da Humanidade? Teremos sempre que nos submeter aos interesses do mercado imobiliário, da ganância dos políticos e das ideias comezinhas? Acredito ser obrigação e privilégio de todo brasileiro preservar a cidade concebida para ser a capital da nossa República.
Regina Meyer, professora do Laboratório de Urbanismo da Metrópole da FAUUSP
Uma cidade é uma realidade socialmente viva e assim deve permanecer ao longo de sua história. Penso que a mudança, como o diz o próprio Niemeyer, é mesmo uma característica inerente às cidades. Viver em um espaço sem possibilidade de modificá-lo é uma redução drástica do sentido da vida urbana. Em princípio, o tombamento pode tornar-se ato de restrição, indevido em relação às ações que poderiam realizar seus habitantes, tanto no presente quanto no futuro. As mudanças urbanas são instrumentos de ação social e revelam a capacidade cultural e técnica da população que ali vive. Tombado o espaço urbano onde transcorre a vida cotidiana, os moradores de Brasília estarão destinados a realizar apenas ações menores, ou desprovidas de conteúdo social. A contradição acerca de Brasília é, contudo, de outro tipo, já que visou à preservação de uma ideia, de um conceito. Visto como "metassíntese" da modernização do País, o Distrito Federal representa um momento importante da cultura brasileira. E, por isso, é fundamental preservá-lo como experiência cultural. Por outro lado, a capital não pode imobilizar-se em um estágio que traduz apenas um momento do ideário urbanístico estabelecido há 50 anos. E como uma cidade não pode ficar restrita aos desígnios de sua origem, Brasília tem um longo caminho a percorrer. É necessário que esse futuro seja planejado, para que permaneça livre de arbitrariedades, mas também de imposições restritivas.
Andrey Rosenthal Schlee, arquiteto, urbanista e diretor da FAU/UnB
O antropólogo James Holston manifestou-se contra o tombamento, argumentando que o importante seria preservar o "espírito de invenção" de Brasília. Mas ele sempre teve dificuldade em compreender a cidade e seus postulados - talvez porque nunca tenha percebido que o Plano Piloto tem genes fortíssimos. A invenção de Lucio Costa não está fundada em um modelo, mas dialoga com uma série de paradigmas urbanos e arquitetônicos produzidos ao longo dos tempos e vigentes na primeira metade do século 20. As características fundamentais da cidade planejada estão vivas, e não congeladas, como querem dizer alguns, e continuarão presentes, marcando a sua longa duração. Por que achar que tombamento é a mesma coisa que congelamento? Brasília é uma capital única. Deve ser preservada como testemunho não só do urbanismo de uma época, mas também do que fomos capazes de realizar. Falo, é claro, da cruz imaginada por Lucio Costa, logo riscada no chão do Planalto Central para ser, por fim, transformada em avião, por milhares de candangos empobrecidos, todos sonhadores... Falo da arquitetura de Niemeyer. Brasília é uma realidade bela, racional e concreta, sempre em contraste com os milhões de sonhos daqueles que nela não podem viver. Uma cidade que não desabrochou como flor, mas que foi pensada como um cristal, a partir de uma concepção plástica e ideal. Temos que encarar a cidade de frente, estudá-la, conhecê-la melhor. Temos que ter a coragem de propor e projetar as transformações que ainda se fazem necessárias. Agindo assim, só estaremos valorizando a cidade Patrimônio da Humanidade.
Maria Elisa Costa, arquiteta, ex-presidente do Iphan e filha de Lucio Costa
Por que é tão difícil aceitar que a existência de Brasília é um caso ímpar - não um entre outros -, e que se trata de uma realização extraordinária da nação brasileira? Por que não aceitar que preservar a área tombada significa guardar para as gerações futuras o testemunho palpável desse momento excepcional da nossa história? Esse assunto, a meu ver, só deve ser discutido nesse nível, e não alimentando polêmicas e discussões menores, que só servem para estimular uma atitude tola e medíocre. A área urbana do Distrito Federal é suficientemente grande para ser desenvolvida como qualquer outra cidade brasileira. E na área tombada, o que se preserva é o conceito da cidade, expresso pelo que Lucio Costa chama de escalas urbanas. É preciso se informar melhor a respeito disso.
sexta-feira, 11 de junho de 2010
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